Ponto de vista: Nossos comentários sobre a inveja, 6

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                                                                           Joaci Góes

Para o amigo André Menezes!

Impressiona o silêncio de religiosos da esquerda diante de certos fatos de evidência solar. Enquanto, apoiados no talentoso economista francês Thomas Piketty, alardeiam o aumento da desigualdade econômica no mundo, ao longo dos últimos duzentos anos, silenciam sobre o fato de que no ano 1800, quando a população terráquea era de um bilhão de habitantes, 90% viverem na linha da miséria, havendo, apenas, 10% de afluentes, em meados da terceira década deste Terceiro Milênio, quando a população alcançou oito bilhões de humanos, somente 10% se encontram na linha da miséria. A inevitável desigualdade econômica, a mais perceptível na diferença na qualidade de vida das pessoas, não é a que mais importa, desde que respeitado o piso da dignidade para o exercício de uma cidadania plena. Basta ver que ao longo dos setenta anos de duração do regime bolchevique, a média de renda, per capita, dos comunistas, em qualquer dos anos, foi inferior à média dos ganhos do terço mais pobre dos Estados Unidos, como hoje, a média de renda do terço do país mais pobre da Europa Ocidental é superior à média de renda de cubanos ou coreanos do Norte. Aceitar ganhar menos, desde que o vizinho não ganhe mais do que eu, é um sentimento que deriva da inveja, erradicável se ocorrer o abandono do pacto de silêncio siciliano existente a respeito, mediante sua discussão catártica, como parte importante da educação dos povos, como expusemos no livro de 2001 A Inveja nossa de cada dia: Como lidar com ela. Recorde-se o livro do sociólogo austríaco Helmut Schöeck (1922-1993) sobre a inveja, Der Neid, eine Theorie der Gesellschaft, (A Theory of Social Behavior) Inveja: uma teoria do comportamento social, dedicado ao estudo desse sentimento destruidor como fator de modelação das sociedades humanas. 

O modo reticente como alguns críticos do capitalismo reconhecem suas “eventuais” conquistas é de uma pobreza indigente, ao compara-las com os “eventuais” benefícios advindos das guerras, como a dizerem que de “muitos males pode advir o bem.”  Esses críticos desconhecem que, na ponderação geral, nunca advieram benefícios de guerras ou revoluções, na contramão do que muitos alardeiam. 

O leitor que vem acompanhando esta longa arenga sobre a inveja, poderá estar perguntando: “E eu, que já perdi a possibilidade tempestiva deste desbloqueio, o que faço?” A única resposta possível a esta pergunta é encontrar coragem, muita coragem. Uma coragem ainda maior do que a definida por Napoleão Bonaparte, para quem a verdadeira coragem seria aquela das “três horas da manhã”, que se processa sem testemunhas, no interior das almas, mesmo assim inferior à maior de todas as coragens, a suprema “coragem de parecer covarde”, quando necessário. 

 Pensamos que maior ainda do que esta suprema coragem napoleônica é a de reconhecer que se sente inveja. Não a eufemística “boa inveja”, mas a inveja, sem rebuços, na plenitude de sua negatividade, sem maquiagem e sem subterfúgio, sobretudo a inveja admitida em casos concretos e atuais. Trata-se de empreitada tão difícil que tangencia as raias do impossível. Mais do que ninguém, disso sabem os psicanalistas que têm, nos pacientes acometidos de intensa inveja crônica, alguns dos seus casos mais difíceis. Clientes há que preferem abandonar o tratamento, a terem que admitir que sentem inveja, como nos ensinou Melanie Klein, ao revelar que um cliente abandonou, abruptamente, o tratamento, ao ouvir dela que o seu caso era inveja. Do ponto de vista prático, temos que reconhecer que determinados indivíduos se encontram tão mergulhados no caldo de cultura da inveja que, numa postura sadomasoquista, preferem continuar roendo os outros e a si mesmos a terem que enfrentar esta questão. Não têm força, nem vontade para se libertarem da perversa escravidão. Os que quiserem, porém, enfrentar o desafio, podem iniciar por um patamar mais modesto. 

JOACI GÓES

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