Muitos deles dizem depender de consignados ou ajuda; situação tem se agravado desde 2012, por mudanças no plano de carreira e na previdência estadual
Aos 73 anos, Silvia Matos devia fazer aulas de pilates, que custam R$ 200 mensais, para remediar as dores na coluna, mas a renda só quita as contas mais urgentes, como remédios, comida e energia. Por mais de três décadas, ela trabalhou como professora da rede estadual, até se aposentar em 2014 com a remuneração líquida de R$ 825. “Com esse salário, pode fazer o quê?”, pergunta.
No bairro do Pau Miúdo, onde cresceu e virou professora, Silvia mora com uma irmã. Como a propriedade é da família, não pagam aluguel. Às vezes, ela sai com amigas aos finais de semana, mas de segunda a sexta fica mais reservada.
“Não posso sair muito, nem ficar nas costas dos outros. Está melhorzinho para quem tem herança, um filho que estudou. Não tenho. Sou eu e eu”, diz.
Desde março, ela e outros professores aposentados pelo estado cobram ao Governo o pagamento da previdência em três salários-mínimos para quem cumpria 20 horas semanais de trabalho ou com base no piso salarial, que deve ser reajustado para R$ R$ 4.420, determinou o Ministério da Educação.
Parte dos aposentados mostram contracheques em que a remuneração é inferior até a um salário-mínimo, R$ 1.320, mesmo antes dos descontos devidos, e o salário base da categoria.
A aposentada Silvia integra um grupo de professores aposentados, chamado Movimento de Apoio aos Aposentados da Bahia (Mapa). Em um aplicativo de mensagens, 150 integrantes compartilham mensagens.
As histórias mudam de endereço, os elementos em comum se mantêm: dificuldade, passado e esperança. Sem fechar as contas do mês, há aqueles que se afundam em dívidas ou dependem de familiares.
Se o salário base de R$ 4.420, referente a quem trabalha 40 horas semanais, for pago pelo Governo da Bahia, aqueles que cumpriam 20 semanais receberão R$ 2.210. Isso significaria, para Silvia, ganhar mais que o dobro de hoje.
Em conjunto, o Mapa enviou uma carta ao governador Jerônimo Rodrigues (PT), professor licenciado da Universidade Estadual de Feira de Santana. Na correspondência, solicitou “isonomia entre ativos e aposentados atendendo às legítimas necessidades de quem dedicou sua vida à educação pública”.
“É difícil ter uma vida melhor, uma alimentação, fazer um pilates, que eu preciso fazer, por exemplo”, elenca Silvia.
Em um dos cômodos da residência, ela guarda livros que usava para preparar as aulas de Ciências e Matemática de 1982 a 2014. “Criança, eu já era professora”, brinca Silvia sobre a época em que improvisava aulas aos irmãos. Vestia-se a rigor para a brincadeira: uma bolsa de verniz da mãe costureira e um vestido.
A carreira de professora parecia natural. Se quisesse ascender economicamente, os estudos também soavam como o caminho, em uma família de classe média baixa. “Lutei para ter uma vida melhor, mas não estou tendo”, desabafa.
A situação financeira se agrava ainda mais entre aqueles que integraram uma carreira agora em extinção – professores com apenas nível médio – ou um quadro especial criado pelo governo há 12 anos.
Deterioração econômica começou há 12 anos
Por vias judiciais, professores aposentados já tentavam reverter o valor que recebem desde 2019. É deste ano os primeiros processos de ex-servidores públicos como Eloísa Ataíde, 59. Só em 2021, dois anos depois, veio o veredito da juíza: o benefício previdenciário dela passou de R$ 2.059 para R$ 3.845. O valor foi reajustado em dezembro passado.
Antes do resultado, em sete anos de aposentadoria, Eloísa relembra as dificuldades para fechar o mês. Em uma agenda, ela ainda anota todos os gastos, fixos e triviais.
“Mas depois do resultado judicial, as coisas melhoraram um pouco. Por exemplo, eu nunca tive poupança e agora tenho”, conta ela, ex-professora de artes da educação artística.
No dia da aposentadoria, colegas fizeram uma festa daquela que era apelidada a “chave inglesa” da escola – assim como a ferramenta, eles diziam que Eloísa consertava tudo na unidade. O marido dela, Raimundo, também é professor aposentado e aguarda uma decisão judicial favorável para receber o piso salarial.
Os processos têm sido movidos individualmente, mas os professores aposentados têm acionado associações como as associações dos Funcionários Públicos da Bahia e Classista de Educação e Esporte da Bahia (Aceb).
O fundo de aposentadoria de todos os servidores públicos estaduais é o Funprev, gerido pela Secretaria da Administração da Bahia. Por isso, os professores aposentados requerem diretamente ao governo estadual mudanças no benefício previdenciário.
As dificuldades dos professores aposentados cresceram nos últimos 12 anos em resposta à crise econômica e a mudanças nas regras previdenciárias. Hoje, 35 mil professores estão ativos na rede estadual. Os aposentados são 30 mil, estima a Aceb. 60% são mulheres.
O ano de 2012 marca o início da intensificação do empobrecimento deles. Naquele ano, os professores do estado paralisaram as atividades de abril a agosto. A falta do reajuste salarial justificava a paralisação. Na época, professores não licenciados denunciavam receber abaixo do piso nacional, que deveria ser acrescido em 22,22%.
Antes de saber o percentual de reajuste, o então secretário de Educação, Osvaldo Barreto, assegurou o pagamento. O Governo, no entanto, não poderia bancá-lo.
Ainda em abril, no dia 26, o governo garantiu que uma parcela dos professores não precisaria receber o piso. Naquele dia, por força de uma lei, o salário de professores com nível médio foi transformado em subsídio. Como esses servidores foram alocados em “quadro especial”, uma espécie de carreira paralela, o pagamento da base salarial dos professores para esse grupo de profissionais deixava de ser, em tese, obrigatório.
Assim, esses servidores “especiais” teriam como forma de acréscimo do benefício os reajustes lineares. Desde 2015, só houve dois reajustes lineares. Estão no “quadro especial”, hoje, após novas incorporações, também os profissionais classificados como I, IA, II e IIA.
“Independente de ser subsídio, o grande problema é que esse pessoal que está aposentado não tem outras possibilidades de reajuste além do linear. Eles não tiveram direito a mudança de nível, o salário deles permaneceu inalterado. Porque ele não recebe mais remuneração, mas provento. Por isso a aposentadoria se deteriorou muito mais rápido”, explica a economista Ana Georgina da Silva Dias, supervisora técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) na Bahia.
Segundo a Aceb, 15 mil professores aposentados pelo estado só fizeram magistério ou licenciatura curta – cursos que habilitavam professores para o ensino infantil e fundamental. Em 1988, passa a ser exigido o nível superior.
Pelas escolas estaduais, ainda há dois mil professores com nível médio. Quando o último se aposentar, os cargos deixarão de existir.
Mudanças na previdência aceleraram empobrecimento
Em 2020, novas mudanças na previdência estadual impactariam a vida financeira dos aposentados. Naquele ano, a aprovação da reforma retirou a isenção do pagamento da previdência para quem ganhava três salários-mínimos. Dois anos antes, a alíquota de contribuição previdenciária paga pelos servidores já havia aumentado de 12% para 14%.
O governo baiano ainda conseguiu aprovar na Assembleia Legislativa a redução de 4% para 2% do repasse de orçamento do Planserv, o que acelerou, dizem clientes, a piora do plano de saúde dos servidores estaduais. Aqueles que acompanharam a votação – entre eles professores – se revoltaram e chegaram a atacar parlamentares com ovadas.
“Não sei que mágica foi essa que fizeram, a mágica da maldade, só pode, com quem trabalhou a vida em sala de aula”, desabafa Elza Pinto, 77, professora aposentada pelo estado que recebe R$ 1.274 mensais.
Em 2022, um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário, com base em dados do INSS, mostrou que o valor médio ganho por brasileiros aposentados era de R$ 1.545.
Em casa, Elza e a irmã dividem contas e tarefas domésticas. “Mas Deus me livre guarde uma vai embora, a gente não se mantém”, conta ela, cria de uma família de professores. Os 12 irmãos foram educados para ensinar.
Elza, criada para ensinar (Foto: Paula Fróes/CORREIO) |
A mãe deles, Jaci, acreditava que na sala de aula não faltaria trabalho. “Tudo na nossa vida foi em torno da educação”. A família mudou de cidade duas vezes para que as crianças tivessem uma formação educacional mais completa. Foi em Caetité, em 1965, que Elza cursou o magistério.
A vinda para Salvador, e a aprovação no concurso público para ser professora do estado, aconteceria no ano seguinte. “Você pensa que depois de tudo, vai se aposentar e viver com aquilo”.
Sem respostas do governo
A aposentada Elza se juntou ao grupo Mapa logo na criação dele. Foi Geracina Aguiar quem idealizou a reunião dos aposentados. Geracina é doutora em Desenvolvimento Sustentável e Biodiversidade pela Universidade de Montpellier, na França, e uma das fundadoras do PT na Bahia.
“Estamos confiantes que o governador, que também é professor, atenda os clamores dos professores aposentados”.
Algumas da integrantes do Mapa (Foto: Paula Fróes/CORREIO) |
A reportagem buscou o Governo da Bahia para respostas. O CORREIO procurou a secretaria estadual de Educação, pela primeira vez, no dia 28 de março. Sem retorno, repetimos as solicitações, com emails, mensagens e ligações. Também acionamos a assessoria do governador Jerônimo, que está na China, e a Saeb.
Buscamos, diretamente, a secretária de Educação, Adélia Pinheiro, por mensagem e ligação, mas não tivemos retorno. O espaço segue aberto.
Entre os questionamentos enviados às secretarias, questionamos os valores dos benefícios dos aposentados e se o Estado pretendia atender às solicitações deles, baseada na lei federal 11.738 de 2008, que regulamenta o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica.
Na ausência de resposta do governo, Marinalva Nunes, presidente da Aceb e professora aposentada pelo estado diz:
“Os aposentados estão passando necessidade, deixando de pagar um plano de saúde para pagar o pão. Eu me aposentei em 2004 e só comecei a ganhar o piso porque entrei na justiça em 2019 e temos incentivado que os aposentados e pensionistas façam isso”.
Professores aposentados viram ‘presas’ de consignados
Um câncer no útero afastou Raimunda Pedro, 77, da sala de aula. A descoberta ocorreu no 12º ano da professora na rede estadual e antecipou a aposentadoria para 1989.
“A gente vai vivendo com empréstimo.. Acho que [ganhando o que ganho] não dá para sobreviver sem. Só se tiver um marido de primeira categoria para resolver”.
Da aposentadoria pelo estado, menos que um salário-mínimo, 30% quitam dois empréstimos consignados. Ela diz poder custear remédio, energia e alimentação porque a renda é complementada por outra aposentadoria, como diretora de uma escola da rede municipal de Salvador, onde passou a trabalhar depois de curada.
‘Não dá para viver sem consignado’, diz aposentada (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
A busca por consignados é uma das faces da perda salarial de professores aposentados. Mas não só deles: a Previdência Social calcula 8 milhões de aposentados e pensionistas com consignados, que corroem 45% do benefício de 1,8 milhão de pessoas.
Esse modelo de empréstimo, cujas parcelas são descontadas na folha salarial ou benefício previdenciário, surgiu no Brasil nos anos 60 e se expandiu a partir de 2012, alavancado pelo o gradual processo de empobrecimento da população.
“Acabam sendo mais favoráveis por ter a menor taxa de juros, que é alta independente da modalidade”, explica o economista Gustavo Pessoti, presidente do Conselho Regional de Economia da Bahia.
No dia 28 de março, o Conselho Nacional de Previdência Social reduziu de 2,14% para 1,97% ao mês os juros de consignados a beneficiários da previdência – inclusive, o Funprev. Entre aposentados, a corrosão do poder de compra pode ser maior. Pessoti justifica: “Muitos são a renda principal dos domicílios”.
Nas duas vezes em que Ivone Navarro, 69, recorreu aos consignados, o dinheiro ajudou a família e consertou um carro. Estava aposentada do cargo de professora do estado há dois anos quando contratou R$ 7 mil. Hoje, deve R$ 20 mil a um banco público e ao Credicesta, cartão de crédito para servidores públicos do estado.
“Eles oferecem com tanta facilidade e a gente vai na onda, porque a necessidade é de urgência”.
Para quitar as dívidas, que corroem metade da renda dela, Ivone espera pelo pagamento do precatório do Fundef. De 1998 a 2006, esse programa alocou recursos repassados para a educação fundamental. Mas, enquanto o Fundef vigorou, houve diferenças monetárias não repassadas aos servidores estaduais.
Professora Ivone, nos anos 2000 (Foto: Acervo Pessoal/Ivone Navarro) |
Ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) liberou R$ 9 bilhões desse montante. 84 mil profissionais têm direito a receber 80% do montante ressarcido pela União ao Estado da Bahia (R$ 1,4 bilhão). O dinheiro começou a cair na conta em setembro do ano passado.
Por 33 anos, Ivone, que vive em Teixeira de Freitas, ensinou Inglês e História em escolas estaduais no Sul da Bahia. Depois da aposentadoria, em 2013, abandonou alguns hábitos, como cuidar de si. O pouco mais que um salário-mínimo que recebe paga as contas da casa e ajuda na criação de um neto.
Desde adolescente, ela queria ser professora – e não se arrepende. “Gostaria de ser sempre. Professores estão ganhando pouco, sim, porque ninguém valoriza, mas se não seríamos a melhor categoria, formamos cidadãos”.
Se o pleito pelo piso salarial for atendido, ela tem planos: dar entrada numa casa de condomínio.
Correio da Bahia