J.R. Guzzo: “Sabe-se que o STF não admite mais que se diga nenhuma mentira neste país, nem que saia uma notícia falsa na internet, nem que se faça “desinformação”, e por aí afora” | Foto: Divulgação/Flickr
(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 8 de junho de 2022)
De todas as aberrações legais que o Supremo Tribunal Federal criou com as suas decisões, fazendo do Brasil um país onde a confiança que se pode ter na lei é a mesma que se dá a um vendedor de relógio suíço no Viaduto do Chá, provavelmente nenhuma é tão bichada quanto a campanha apostólica, radical e altamente excitada que se armou contra as “notícias falsas”, como se poderia dizer perfeitamente em português — mas que os ministros preferem chamar de “fake news”, num admirável esforço para introduzir o idioma inglês na linguagem oficial da justiça brasileira. As “fake news” são um ectoplasma apavorante. Ninguém saberia dizer o que é uma fake news — ou seja, estamos aí diante de um crime que o STF proíbe de se cometer, mas que ninguém sabe qual é, pois ele não está descrito no Código Penal Brasileiro ou em qualquer outro lugar da legislação brasileira ou mundial. É um problemão. Se você é candidato nas próximas eleições, por exemplo, pode ter o seu registro cassado se o TSE achar que cometeu alguma “fake news.” Se é um cidadão normal, pode se ver metido no Inquérito Perpétuo Para Investigar Atos Antidemocráticos que o ministro Alexandre de Moraes toca há três anos e aí a coisa fica preta — você pode ser preso, exilado, multado, desmonetizado, tornozelado, ter as suas contas bancárias bloqueadas (e as contas da sua mulher também) e ficar sujeito a qualquer punição que inventem.
Jamais houve uma situação assim na história deste país: o cidadão não sabe, a nenhuma hora do dia ou da noite, se é culpado ou inocente, pois não sabe se cometeu ou não o crime que os ministros do STF fazem pairar sobre todos nós. Ninguém parece livre disso, nem o personagem mais querido da justiça brasileira de hoje em dia — o ex-presidente Lula, atual candidato à presidência da República. Ou melhor: com ele não acontece nada, nunca, mas a sua gritaria de campanha pode deixar o ministro Moraes com a vida complicada em matéria de “fake news”. Lula acaba de dizer, falando diretamente do presidente Bolsonaro, que “gente dele” esteve envolvida no assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018. Não há, como a justiça sabe há mais de quatro anos, nenhuma prova a respeito — se houvesse, o presidente já estaria há muito tempo fora do Palácio do Planalto. E agora? Dizer o que Lula disse é “fake news”? Ou é uma questão de opinião?
Parece ser uma questão de opinião, pela lógica comum — mas vai saber. Volta-se, inevitavelmente, ao pecado original desta história toda: ninguém sabe, exatamente, o que é o diabo da fake news. Sabe-se que o STF não admite mais que se diga nenhuma mentira neste país, nem que saia uma notícia falsa na internet, nem que se faça “desinformação”, e por aí afora. Sabe-se, também, que “fake news” é tudo o que o seu adversário político diz contra você. Mas e além disso? É uma treva completa. Bolsonaro poderia dizer, a respeito de Lula, que “gente dele” esteve envolvida no assassinato do prefeito Celso Daniel? Ele teria a mesma quantidade de provas que Lula teve para acusá-lo de envolvimento na morte de Marielle. O STF pune um dos dois? Pune ambos? Não pune nem um e nem outro, por que aí já é coisa de cachorro grande? É uma palhaçada gigante.
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