‘Existe um desequilíbrio entre os Poderes que não sabemos quando e se será restaurado’

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Organizadora do livro Suprema Desordem: Juristocracia e Estado de Exceção no Brasil, promotora fala sobre abusos do Judiciário brasileiro

Cláudia Piovezan: ‘Os rumos do país são determinados por uma minoria sem voto e sem contato com a realidade da população’ | Foto: Reprodução/Brasil Paralelo

O Poder Judiciário está onipresente na vida pública brasileira e as decisões cada vez mais autoritárias e distantes da legislação e da realidade da população suprimem direitos fundamentais, sem qualquer oposição consistente da sociedade. Essa é a síntese da entrevista concedida a Oeste pela promotora Cláudia R. de Morais Piovezan, organizadora do livro Suprema Desordem: Juristocracia e Estado de Exceção no Brasil, lançado no mês de julho, em Londrina (PR). Com coautoria na organização da juíza Ludmila Lins Grilo, a obra é formada por sete artigos, com temas específicos, nos quais estudiosos do direito e da política relatam a situação brasileira.

A promotora deu exemplos concretos do estado de exceção instaurado no Brasil, que “se configura quando os direitos individuais dos cidadãos são suprimidos, sem que eles possam se utilizar dos meios legais para se defender”. Inquéritos instaurados pelo STF, às margens da lei processual, são alguns desses exemplos.

A perseguição durante a pandemia de covid-19 contra pessoas que se manifestaram contra as medidas de isolamento social ou se recusaram a tomar as vacinas experimentais também são analisadas no livro. “Retomar as liberdades que já tivemos antes também depende de uma mudança de mentalidade dos indivíduos, que parecem ter se habituado com a censura do debate e até gostado dela”, diz a promotora, que é mestre em Direito pela Universidade da Flórida e já organizou outros dois livros sobre tema semelhante.

O estado exceção se configura quando os direitos individuais dos cidadãos são suprimidos, sem que eles possam se utilizar dos meios legais para se defender. Isso pode ocorrer legalmente, em situações extremas e devidamente previstas na Constituição, ou pode ocorrer ilegalmente, ou seja, fora dos casos previstos no ordenamento jurídico, quando, nas palavras do jurista Ricardo Peake Braga [autor do artigo The supreme court can do no wrong – é o Brasil um estado democrático de direito?], o princípio da legalidade é desligado e a base democrática do sistema jurídico é destruída.

Isso está acontecendo no Brasil?

Atualmente, no Brasil, temos verificado diversas situações em que os direitos individuais foram e continuam suprimidos fora dos parâmetros legais, como nos casos de alguns inquéritos e processos criminais instaurados no Supremo Tribunal Federal. Além disso, vimos um grande espectro de direitos fundamentais serem despudoradamente violados durante a pandemia da covid-19, sem previsão legal e constitucional e com base em decisões arbitrárias, posto que não calcadas nem mesmo motivações racionais.

As liberdades suprimidas – liberdade de expressão e a própria autodeterminação de vacinar-se ou mesmo de falar contra medicamentos experimentais – serão retomadas?

A resposta para esta pergunta é daquelas que vale milhões. Existe um evidente desequilíbrio entre os poderes que não sabemos quando e se será restaurado. Esse desequilíbrio causa uma enorme insegurança jurídica, mormente porque a Constituição tem sido reiteradamente violada e o sistema de freios e contrapesos não funciona. Para além do desajuste político e jurídico, percebemos um ambiente cultural corrompido no qual muitos cidadãos parecem concordar com as arbitrariedades que têm sido praticadas contra as liberdades. Portanto, retomar as liberdades que já tivemos antes também depende de uma mudança de mentalidade dos indivíduos, que parecem ter se habituado com a censura do debate e até gostado dela.

“As políticas públicas e os rumos do país são determinados por uma minoria formada por tecnocratas sem voto e sem contato com a realidade da população”

Qual a face mais evidente da juristocracia hoje e como a senhora avalia a onipresença do Judiciário em todos os setores da sociedade?

A face mais evidente da juristocracia é que atualmente todas as questões relevantes e até mesmo irrelevantes para o país são decididas pelos juristas que levam as discussões para os tribunais, seja por meio de partidos políticos, por organizações não governamentais — muitas delas financiadas com verbas internacionais —, seja pelo Ministério Público, seja pela Defensoria Pública, e que acabam sendo decididas por onze ministros do STF. O povo brasileiro foi alijado do processo e essas entidades e órgão públicos, dominados pelos bacharéis de direito, tomaram as rédeas do poder, que está sendo exercido por meio da judicialização completa da vida, da administração pública e da política. Estando o povo afastado do debate e do centro de decisões, as políticas públicas e os rumos do país são determinados por uma minoria formada por tecnocratas sem voto e sem contato com a realidade da população.

Algo pode ser feito para refrear essa conduta?

Primeiramente algo pode ser feito por aqueles que ocupam posições que detêm a atribuição de fazer funcionar o sistema de freios e contrapesos e têm se omitido.  Em segundo lugar, é possível a aplicação de outro mecanismo previsto constitucionalmente, que é o artigo 142, da Constituição Federal, cuja mera menção provoca choro e ranger de dentes nos mais histéricos e histriônicos. No entanto, o mecanismo existe constitucionalmente para ser empregado nos momentos de crise, como esse que enfrentamos. Esse tema foi abordado pelo jurista Ives Gandra da Silva Martins e causou um grande escândalo entre os militantes da juristocracia e grupos a quem interessa esse estado de corrosão constitucional.

Há outras maneiras?

Considerando que o protagonismo da atual crise é o Supremo Tribunal Federal, uma possibilidade sempre presente é a renovação daquela Casa, o que acontece em países em que há alternância de poder, como ocorreu recentemente nos Estados Unidos, de maneira que vai se mudando perfil da Corte com a renovação de seus membros. Uma outra possibilidade são reformas constitucionais, mas estas só podem ser feitas com um Congresso independente e comprometido com os rumos do país. Todas essas são soluções absolutamente legais e constitucionais. Há outras que foram escolhidas por diversos países que implicaram em rupturas legais e constitucionais, mas que esperamos que não ocorram em nosso país.

Por que grande parte da sociedade e instituições ligadas ao direito (OAB, associação de juízes e promotores) não se manifestam contra esse estado de coisas?

É necessário compreender que os juristas atuais, em sua grande maioria, se formaram no ambiente acadêmico, cultural e intelectual da Constituição de 88 e sob governos de esquerda. Logo desconhecem outras possibilidades do Direito e repudiam a autocontenção judicial. Poucos têm alguma noção de Direito Natural ou mesmo de um Direito anterior ao modernismo e também não querem saber porque não suportariam o peso de serem rotulados de “retrógrados” num ambiente em que as pessoas se orgulham de se autointitular “iluministas” e “progressistas”. Portanto, como diria o professor Olavo de Carvalho sobre o projeto gramsciano de revolução cultural, em sua maioria são como peixes que não percebem a água em seu entorno. A sua formação se deu em termos de clichês como “democracia”, “estado democrático de direito”, “justiça social”, “agente de transformação social”, “igualdade material”, etc. Portanto, tudo que lhes é apresentado nesses termos pelos seus pares, colegas de bolha, é inquestionável.

Há outros fatores?

Além disso, há os militantes; há os que obtém vantagens como cargos, troca de favores e bajulações; há os que têm medo; há os que não querem se incomodar e há uma grande massa que não está entendendo nada do que está acontecendo e não está interessada. Por outro lado, os poucos que denunciam os abusos não têm espaço em suas instituições, estão sempre sujeitos a perseguições, representações e processos disciplinares, portanto sob vigilância constante, e sofrendo violações em sua liberdade de expressão e de opinião.

Este é o terceiro livro da série de obras para denunciar a anomalia da conduta do Judiciário. O que mudou de lá para cá?

O primeiro livro, Inquérito do Fim do Mundo, o apagar das luzes do direito brasileiro, foi lançado em meados de agosto de 2020. Já na apresentação do livro apontei que esse procedimento instalaria uma máquina de perseguições políticas que não se restringiria ao STF, mas que se espalharia por outros órgãos, como Congresso Nacional, Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal de Contas e, porque não dizer, para os tribunais inferiores já que o precedente estava aberto. E foi exatamente a isso que assistimos durante os últimos dois anos.

Era uma tragédia anunciada?

O que já era possível vislumbrar por alguns atos isolados naquela época, agora está escancarado. Então temos um inquérito, o 4.781, que não tem fim, como já havíamos adiantado que ocorreria; temos os filhotes do Inquérito 4.828, no qual o ex-deputado Roberto Jefferson foi preso e processado ilicitamente; tivemos a fracassada CPMI da fake news, que foi ela mesma uma grande farsa que alimentou o inquérito do fim do mundo e se alimentou dele e não comprovou nada do que imputou aos investigados; tivemos a CPI da Covid, outra farsa instalada no Senado por decisão do STF; e atualmente temos o rolo compressor do TSE, que coloca a eleição sob suspeita ao blindar as urnas eletrônicas e perseguir seus críticos. Logo, as ilegalidades e perseguições que denunciamos no primeiro livro, que reiteramos no segundo livro, Sereis como Deuses, o STF e a subversão da justiça, foram se recrudescendo e arrastando um número cada vez maior de vítimas. E nos tribunais inferiores e na primeira instância já verificamos procedimentos criminais anômalos com imputações de “crimes” não previstos em lei; perseguições políticas; censura à liberdade de expressão, seguindo os precedentes da mais alta Corte.

REVISTA OESTE

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