A abertura de uma ação contra o senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) sob acusação de injúria e difamação mostra como julgamentos no STF (Supremo Tribunal Federal) têm sido influenciados pelo conflito deflagrado entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o Poder Judiciário.
No início de maio, a Segunda Turma do tribunal decidiu pelo prosseguimento da investigação contra o senador, na contramão do entendimento do ex-relator do caso e até mesmo de opiniões antigas da corte sobre os limites da liberdade de expressão de outros políticos.
Kajuru afirmou que o ex-deputado Alexandre Baldy (PP-GO) “integra uma quadrilha” e que o senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO) é “pateta bilionário”, “inútil” e “idiota incompetente”. Também disse que o senador usaria o mandato para fazer negócio.
A decisão de abrir ação contra Kajuru teve o apoio dos ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin e Ricardo Lewandowski.
Mas em casos anteriores, por exemplo, a corte negou tornar o então deputado Jean Wyllys (PT-RJ) réu por chamar o colega de Câmara João Rodrigues (PSD-SC) de “ladrão, bandido, desonesto, estúpido e fascista”.
Da mesma forma, rejeitou pedido do filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para que o deputado Domingos Sávio (PSDB-MG) respondesse a processo por ter dito que “a roubalheira na Petrobras começou lá no governo Lula e o Lulinha filho dele é um dos homens mais ricos do Brasil hoje”.
De forma unânime, o tribunal ainda rejeitou em 2020 queixa-crime contra o deputado Herculano Passos (Republicanos-SP), que chamou em live um prefeito de “corrupto”, “covarde”, “vingativo”, “mentiroso”, “perseguidor” e “frouxo”.
No caso do deputado Passos, o Supremo afirmou que o parlamentar agiu em seu perfil oficial com falas de “clara oposição e descontentamento com o atual prefeito, devendo, por isso, ser entendidas no contexto de entrave político”.
Inicialmente, parecia que o caso de Kajuru teria o mesmo desfecho. A PGR (Procuradoria-Geral da República) se manifestou pelo arquivamento da queixa-crime sob o argumento de que seria o mais condizente com a jurisprudência da corte.
O então relator da ação, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo durante 13 anos, também afirmou que o arquivamento do processo seria a única solução que respeitaria o entendimento majoritário do STF sobre liberdade de expressão e imunidade parlamentar.
“Com apoio na jurisprudência prevalecente nesta Corte, e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, julgo extinto este processo de índole penal”, concluiu.
O magistrado defendeu que o comportamento de Kajuru “subsume-se, inteiramente, ao âmbito da proteção constitucional fundada na garantia da imunidade parlamentar material”.
Segundo Celso de Mello, é necessário reconhecer que os ataques a Alexandre Baldy e ao senador Vanderlan Cardoso compunham o contexto de “antagonismo político” entre os envolvidos em Goiás.
Os advogados, porém, recorreram da decisão e o processo foi submetido à Segunda Turma. Celso de Mello reiterou sua posição pelo arquivamento do caso, mas o ministro Gilmar Mendes pediu vista (mais tempo para analisar o caso).
Ele liberou a ação para discussão do colegiado apenas um ano e meio depois, quando Celso já havia se aposentado. Gilmar, então, votou para dar prosseguimento à investigação, o que pode resultar na condenação do senador.
O magistrado foi acompanhado por Fachin e Lewandowski. O ministro André Mendonça foi o único a votar pelo arquivamento do caso. Ele entendeu que os ataques devem ser protegidos pelas garantias previstas na Constituição aos detentores de mandato.
“Importante notar que as falas do querelado [Kajuru], conforme se depreende do contexto em que manifestadas, se referem a claros adversários políticos no mesmo estado, Goiás”, disse.
Na visão de especialistas do tema e na avaliação reservada de interlocutores no Supremo, a reviravolta no caso está ligada ao contexto político, em que a corte passou a se defender de ataques e ameaças de aliados de Bolsonaro.
O professor e doutor em Direito Constitucional Ademar Borges acredita que o desfecho do caso teve influência do cenário de briga entre os Poderes e de ações do STF para se proteger das investidas da militância ligada ao chefe do Executivo.
“A ascensão vertiginosa de ataques discursivos ao funcionamento das instituições democráticas praticados por parlamentares federais acendeu um sinal de alerta sobre o próprio sentido da imunidade parlamentar”, afirma.
O advogado da União Guilherme Florentino, mestre em direito público com dissertação sobre imunidade parlamentar, também vê um vínculo entre o desfecho do caso Kajuru e a tensão entre as instituições.
Ele afirma que o país nunca viveu uma tensão do nível atual desde a redemocratização, o que tem levado o Supremo a se posicionar “com viés de defesa institucional muito forte”.
“Acho que os ministros acabam adotando postura como essa, tendo em vista que poderia abrir espaço para ataques à corte”, diz.
Para embasar seu voto, Gilmar Mendes afirmou que era necessário abrir a ação penal porque os ataques de Kajuru não estavam dentro de um contexto político.
“Enquanto críticas que se refiram a temas ou aos limites de um debate de interesse público são comumente consideradas como abrangidas pela liberdade de expressão, qualquer ofensa descontextualizada do debate e que descambe para a simples agressão ou violência verbal pode ser considerada como passível de sanção cível ou criminal”, disse.
Borges e Florentino dizem, entretanto, que não é possível concluir que o julgamento representa uma mudança na jurisprudência da corte. Eles destacam que se trata de apenas um processo e de um julgamento da Segunda Turma, não do plenário.
Criminalistas, por sua vez, apontam que o Supremo Tribunal Federal tem gradualmente firmado a posição de que a liberdade de expressão não é ampla e irrestrita e encontra limites na honra e imagem de quem é ofendido.
“A mesma premissa deve prevalecer quanto à imunidade parlamentar, que não pode servir de escudo à ofensa pura e simples. Esta certamente não encontra respaldo no exercício da função parlamentar”, diz o advogado criminalista Diego Henrique.
Mestre em processo penal pela PUC-SP, Daniel Bialski afirma que o julgamento de Daniel Silveira aponta uma tendência do Supremo de “colocar limites” a respeito de falas de parlamentares.
“É preciso diferenciar imunidade parlamentar, discurso e crítica política. O discurso do ódio é baseado na ofensa à honra das pessoas de forma indiscriminada e sem justa causa”, afirma ele.
O criminalista Alexander Barroso, articulador de grupos de advogados evangélicos, vê no momento atual, com o julgamento dos casos Silveira e Kajuru, uma flexibilização da jurisprudência da corte.
FOLHAPRESS